quarta-feira, 31 de outubro de 2012


*Leiam...Please! Ébomd+


A Luta do Século

       - A luta do século! - bradou o Guedes.
       - Churrascão lá em casa! - completou o Vasquez.
       Murmúrios bovinos ecoaram na repartição. O Teles deu até aquela coçadinha no alto da nuca, bem onde o cabelo terminava e a careca começava. Churrasco na casa do Vasquez rimava com catástrofe. A casa era ótima, quintalzão, piscina e tudo mais, e o Vasquez era um querido. O problema era que ele não entendia nada de churrasco. Uma vez achou uma peça de cinco quilos de músculo perdida entre as picanhas, arrebatou-a sem sequer conferir a etiqueta e chegou em casa exultante com a barganha, até um segundo olhar confirmar que aquela carne não seria mastigável nem se assasse por cem anos. Fora que chovia, sempre chovia. Era batata, assim que o carvão entrava em brasa, o céu desabava. Mas desta vez era diferente, a luta era do século, e o churrasco também seria. A luta aconteceria na noite de Las Vegas, e passaria aqui de madrugada, quase ao vivo, compraram logo o pay-per-view pra não ter erro. Portanto, o churrasco seria à noite, não teria tanto problema assim se chovesse, o que era praticamente certo. Diziam que quando o Vasquez marcava um churrasco as trajetórias das frentes frias alteravam-se radicalmente. Alertaram o Guedes, que era novo na repartição, mas ele não titubeou:
       - N_ão tem problema, o evento principal vai ser sob um teto.
       E quanto ao outro problema, o do churrasco de músculo, também não era um problema: o Guedes era um ás do espeto, e sua fraldinha tinha fama internacional. Logo o pessoal matou a charada: a ideia do churrasco tinha sido toda do Guedes, que, também logo, o pessoal descobriu que tinha três grandes paixões: churrasco, artes marciais e a Glorinha da contabilidade. Ah, a Glorinha da contabilidade, nesta paixão o Guedes não estava sozinho: mais da metade da repartição arrastava um caminhão pela Glorinha da contabilidade. A Glorinha, assim como mais da metade da repartição, não dava muita bola para churrascos ou lutas, mas iria à festa por consideração, já que também era uma festa de boas-vindas para o Guedes.
       Chegada a grande noite, tradicionalmente chuvosa, o Guedes, sob o toldo, impressionou a todos em geral e a Glorinha em específico com sua fraldinha, sua linguiça e suas previsões abalizadas para a grande luta. Quando os contendores subiram ao ringue em HD, e quando até quem odiava sangue estava ansioso para ver algum jorrar, entre mordidas de picanha mal-passada, caiu um raio no transformador da esquina, que explodiu em chamas azuis. Cinco segundos depois, outro transformador explodiu, mais cinco segundos e chegou o Teles.       O Teles era famoso por ter conseguido certa vez derramar a mesma taça de vinho no sofá branco do anfitrião e na camisa de seda, também branca, do supervisor mais chato da repartição. Diziam que o Teles conseguia quebrar até uma faca Guinsu. O Teles chegou, virou para dar um abraço em alguém e deu uma cotovelada no que estava atrás. Lembrou que esqueceu o cigarro no carro e saiu. Deixou a porta aberta. Quando o Vasquez voltou com as velas, notou que os cachorros tinham fugido. Correu pela rua, xingando o sujeito que deixou a porta aberta até a nona geração. E volta o Teles, que olha bem dentro dos olhos do Guedes, que estava acompanhando tudo, ainda meio chocado com a perspectiva da realidade, e diz: "não fui eu". Alguns dos mais frustrados pelo súbito blecaute chegaram a insinuar que o Teles tinha que ter alguma coisa a ver com aquilo - no mínimo, teria batido com o carro no poste. Quando o Guedes ouviu esse cochicho, entrou em chamas. Aquela luta era a revanche da revanche da revanche. Guedes aguardava aquilo faziam exatos oito meses e vinte e sete dias. Fora que estava se matando para fazer um churrasco perfeito, mas, sem luz... Era como fazer uma cirurgia cardíaca no escuro, toda a precisão morre, e o paciente também, artérias entupidas. Alguns disseram que a festa ficou até melhor, que o violão amplificado estava muito distorcido, e que a luz de velas era muito mais intimista. Ao ouvir isso, Guedes ficava roxo, e se perdia no corredor, murmurando: "minha luta, minha luta, minha luta...", como se a luta fosse de fato dele, como se, deixando de vê-la, as chances de sucesso do seu favorito diminuíssem drasticamente.    
       Quanto ao Teles, a parca iluminação só fez ajudá-lo a manter sua reputação. Quarenta minutos após sua chegada, todas as taças estavam quebradas e os convivas bebiam do gargalo. É claro que não foi o Teles quem quebrou todas as taças, mas de fato as taças só começaram a ser quebradas em massa depois da sua chegada. Alguns diziam que era uma aura que ele irradiava, uma influência que era impossível escapar. O único que não quebrou nada foi o Guedes, agarrado à sua latinha de cerveja, churrasqueiro de raiz, frustrado até a gota. Teve uma ideia: ligar para o cunhado, pedir para ele colar o celular na TV para ver se dava para captar alguma coisa. Não estava dando. Quase chorando, o Guedes resolveu aceitar aquela garrafa de uísque que o Vasquez tinha ofertado para aplacar-lhe a angústia. Sentou num degrau isolado, serviu uma dose, pôs a garrafa de uísque na frente dos pés e observou o refletir dourado e bruxuleante do líquido adiante das velas, celular colado no ouvido, ouvindo estática. Foi quando o Teles passou correndo e chutou a garrafa de uísque, estilhaçando-a em mil caquinhos. O Guedes quis botar o rosto entre as mãos e chorar, mas a Glorinha da contabilidade surgiu através das velas e ele engoliu as lágrimas:
       - Posso tomar um gole do seu uísque? Eu estava bebendo vinho, mas parece que o Teles quebrou a última garrafa, e parece que a dose que está na sua mão também é a última.
       E a Glorinha pôde. Tomar um gole, dois, três... Quando estava se sentindo meio tonta, e quis ir embora pra casa, "pra não fazer bobagem", eles descobriram que o Teles, ao ir embora, conseguiu quebrar a chave dentro do trinco da porta, de maneira que todos ficaram presos na casa do Vasquez até às sete da manhã, quando chegou o chaveiro. "Todos", no caso, eram o Guedes, a Glorinha, e os donos da casa, que, bons e calejados anfitriões, ofereceram um único quarto:
       - Desculpa, gente, só tem esse quarto. O sofá da sala está impossível.
       - Problema nenhum. - respondeu o casal, em uníssono. 
       Duas semanas depois, o Guedes ainda não sabia o resultado da luta.




por>guilhermesiman...Baseado em um certo ser e outros ser(es) +







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